UM CINEASTA ATRÁS DA HISTÓRIA DE SP

Dimas Junior lança filme sobre a cortesã mais famosa da capital.
(Rodrigo Brancatelli)

Tudo se resume aos olhos. Lima Machiaverni, garota italiana que aos 2 anos desembarcou na São Paulo conservadora da década de 20, ex-costureira do Brás e ex-camareira de um hotelzinho fuleiro na rua Boa Vista, era dona de uma beleza estonteante. Cabelos curtos, 1,68 metro de altura, corpo frágil, um rosto aristrocrático, lábios sempre pintados. Mas eram os seus olhos, aqueles olhos amendoadosm, que levaram dezenas de homens respeitados à loucura. E que a levaram à tragédia.
Mais de oito décadas depois, os mesmos olhos chamaram a atenção de Dimas de Oliveira Junior, de 49 anos, documentarista com 35 filmes no currículo e uma curiosidade mordaz pelas histórias esquecidas de São Paulo. Podemos dizer que o olhar de Lima continua infalível. "Estava em casa, tranquilo, folheando uma antiga revista Manchete, quando vi a foto de Lima Machiaverni", lembra. "Fiquei absolutamente enfeitiçado por aquela desconhecida... aquele olhar penetrante... Ao ler a notícia fiquei ainda mais impressionado. Aquela mulher passou a me dominar, não conseguia mais pensar em outra coisa Conhecida em toda a cidade como Nenê Romano, ela foi a cortesã mais bela e mais famosa da época, e não era para menos. Também foi protagonista de um estrondoso escândalo da alta sociedade paulistana. Sabia, naquele instante, que era um episódio que não podia continuar desprezado."
Com pré-estréia prevista para a próxima quinta-feira, na Casa das Rosas, na Avenida Paulista, o filme Desatino conta a história de amor entre Nenê Romano, a cortesã, e Moacyr Toledo Piza, o brilhante advogado e audaz escritor que toda São Paulo admirava. Um amor daqueles de folhetins. Na quinta-feira do dia 25 de outubro de 1928, Piza, com seu coração despedaçado e um revólver com cinco balas no tambor, matou Nenê na esquina da Avenida Angélica com a Rua Sergipe e em seguida suicidou-se. "É um caso que reúne várias polêmicas, como prostituição, violência, crime passional, obsessão... Isso sem falar nos políticos e pessoas influentes que cruzaram o caminho de Nenê. O filme tem 25 minutos, é um média-metragem, mas dava para fazer uma série inteira só com a Nenê."

MEMÓRIA PAULISTANA
A paixão de Dimas pela tela prateada começou aos 9 anos, quando viu pela primeira vez Nasce uma Estrela, filme de 1954 estrelado por Judy Garland. Aí vieram Marie Antoniette, de 1938, com Norma Shearer, e Estranha Passageira, clássico de 1942 da atriz Bette Davis. Essas quase sete horas de película bastaram para que o garoto, então com 12 anos, comprasse uma câmera Super-8 para filmar as próprias histórias. "Comecei na raça, sem ter feito faculdade de cinema", diz. "Sempre gostei muito de produção de época, fatos históricos. E percebi que faltava esse tipo de cinema por aqui. A gente quase não tem filmes e documentários que vasculhem nossa memória. O povo só sabe fragmentos da nossa história. Por isso tento situar o passado, para mostrar a importância dele na construção do presente."
Dimas gravou documentários sobre a Marquesa de Santos, Ary Barroso, Elis Regina, Noel Rosa e Orlando Silva. Mas foi só quando viu os olhos de Nenê Romano na revista Manchete que o diretor teve vontade de fazer um filme com atores, totalmente encenado, com direito à ambientação de época, vestidos longos, ternos com gravata borboleta, chapéus panamá e carros Ford T. "Fiz questão até de reconstruir a Avenida angélica da década de 20 em estúdio, para poder filmar a história da Nenê", diz. "Também passei um ano procurando o inquérito original do caso. Gastamos R$180 mil no filme, quase tudo do meu bolso. Eu poderia ter comprado um carro novo com esse dinheiro, um apartamento, eu sei, mas não me daria o mesmo prazer."
Desatino mostra como Nenê Romano conquistou dezenas de fãs em São Paulo, incluindo nesta conta o presidente do Estado Washington Luís. A cortesã trabalhava numa casa na rua Bento Freitas, no centro. Amada pelos homens, Nenê era simplesmente desprezada e odiada pelas mulheres da alta sociedade paulistana. Tanto que, em 1918, a cortesã levou uma navalhada no rosto, de dois capangas a mando da filha da poderosa fazendeira Maria Eugênia Junqueira - a garota ficou enciumada depois de ver se preferido jogar um bilhetinho para Nenê no corso carnavalesco da Avenida Paulista.
Decidida a se vingar, Nenê contratou o advogado Moacyr de Toledo Piza, de 32 anos, sobrinho de senador, irmão de deputado, redator de vários jornais e ex-delegado de polícia nas cidades de Cruzeiro e Bragança. Nenê gostou de Moacyr. Moacyr se apaixonou perdidamente por Nenê. Um relacionamento recriminado em toda a sociedade da época. Os dois ficaram juntos por dois anos, até a cortesã começar a sair com outros homens.
Em 25 de outubro de 1928, Moacyr foi procurá-la em sua casa, mas Nenê estava de saída. entraram no carro. Ele pediu para voltar, ela disse não. Na esquina da Angélica com a Sergipe, Moacyr tirou o revolver do bolso, deu quatro tiros em sua amada e se matou. Antes do crime, deixou um poema. "Deus, tu que és bom, tu que és consolo e abrigo/ De todo o coração amargurado, como assim pode ver-me desgraçado por um amor que me é como castigo/ O amor a uma mulher que faz de um homem um assassino."
No dia seguinte, o jornal O Combate descrevia minuciosamente o episódio, num longo artigo de primeira página, intitulado "Paixão Fatal". A reportagem condenava: "Matou-se Moacyr Piza, o brilhante escritor, depois de ter matado Nenê Romano, a mulher fatal, que tinha um rosto de anjo e uma alma perversa". "A Nenê saiu como a vilã, a vampira da história, mas ela foi um marco na nossa sociedade", diz Dimas, que, empolgado com o resultado do filme, ja se prerpara para filmar as histórias do Castelinho da Rua Apa, da morte da Sofia Peixoto Gomide (assassinada pelo pai em 1906) e do tenente das Forças Públicas João Antônio de Oliveira, conhecido como Tenente Galinha. "Esse é o tipo de memória da cidade que ajuda a gente a entender o presente. São esses personagens marginais e esquecidos que fazem a história de São Paulo."
(O ESTADO DE SÃO PAULO - DOMINGO, 4 DE MAIO DE 2008)